Disso tudo dito até agora, o que podemos
pinçar como a fagulha que acende essa fogueira social, é a manifestação do
pensamento, que está umbilicalmente ligada à dignidade da pessoa humana,
garantida como direito individual abstratamente previsto no texto
constitucional, a manifestação de pensamentos ou ideias está umbilicalmente
ligada aos direitos da personalidade, que já nasce juntamente com a pessoa
humana, independente de jusnaturalismo,
e que, também, tem seus limites traçados dentro do contexto social,
conforme visto pelos casos acima.
Analisando todos esses fatos sociais,
onde, de um lado encontramos uma manifestação de pensamento, baseada na liberdade
expressão, e algo que foi dito em meio de uma multidão de estranhos, ou uma
piada compartilhada entre amigos corre o mundo, e do outro lado, geralmente
pelo meio eletrônico das redes sociais, estão aqueles que se levantam contra a
ideia ou as convicções pessoais manifestadas, os canceladores, que por não
comungar da ideia, ou que particularmente consideram errado, protestam e dão
providências nas redes sociais.
É no mesmo sentido contencioso e
cancelativo, a publicação jornalística que acaba por expor e ridicularizar a
pessoa que é alvo de notícia, que muitas vezes se espalha nas redes sociais.
Nos dois casos há a colisão entre
direito de liberdade de expressão, e no caso de imprensa a comunicação social
abrange a liberdade de pensamento, de expressão e de imprensa.
Importante destacar que no Brasil não
adota a teoria americana do hate speech – que é o discurso público que
expressa ódio, desprezo, intolerância ou incentiva a violência contra pessoas
ou grupos, que se baseia na ampla liberdade de expressão.
Dessa colidencia de interesses
(liberdade de expressão contra liberdade de expressão; liberdade de expressão
contra liberdade de imprensa) o jurista tem a interpretação e aplicação do
direito unidas e somadas aos múltiplos interesses conflitantes na relação
jurídica examinada, em concreto, de forma a definir qual interesse será
preponderante. TEPEDINO (2020) ensina que “essa operação de sopesamento dos
interesses potencialmente em conflito para a definição da norma aplicada ao
caso concreto é conhecida como ponderação”. A ponderação é descrita em três
etapas: a) identificação das normas pertinentes ao caso concreto e seus
potenciais conflitos; b) exame dos elementos fáticos e sua interação com o
elemento normativo; c) atribuição de pesos às normas em disputa, decidindo-se
quais devem preponderar em face as demais[1].
A proporcionalidade é um dos princípios
ou vetor de maior aceitação, inclusive na jurisprudência do Pretório Excelso -
o Supremo Tribunal Federal, que utiliza o mencionado princípio nas interpretações
conformando ordenamento infraconstitucional à luz da Constituição de 1988.
A proporcionalidade não pode ser
confundida com a razoabilidade, esta última tem origem e estrutura diferente. A
razoabilidade ou reasonablenss tem origem no direito anglo-saxônico,
tendo como premissa o caso de Wednesbury Corporation, na Inglaterra, e
do caso Lochner, nos Estados Unidos da América. Esse princípio tem como
característica a razoabilidade interna (compatibilidade entre meio e fim) e
externa (legitimidade dos fins).
Já a proporcionalidade ou Verhältnismässigkeit,
é originária do direito germânico, seus elementos são: a) adequação ou
idoneidade (Geeignetheit), que interligação entre meios e fins; b)
necessidade ou exigibilidade (Erforderlichkeit), que busca meios menos
gravosos para a obtenção dos fins pretendidos; c) proporcionalidade em sentido
estrito (Verhältnismässigkeit), é a ponderação entre o encargo imposto e
o benefício trazido pela medida.
Apresentado esse contexto jurídico que
mostra o princípio da proporcionalidade como um instrumento disponível ao
jurista ou operador do direito a fim de balancear ou ponderar os interesses que
se colocam em rota de colidência, que de um lado pode haver uma manifestação de
pensamento, que é debatida no meio social através da internet, e busca-se como
um movimento social revolucionário, verdadeiras sanções de natureza social.
É verdade que a cultura do cancelamento
foi criada com o objetivo de combater injustiças sociais, e realmente pode ser
uma ferramenta eficaz na luta contra patologias sociais, contudo, diante do
contexto social em que vivemos, somando-se a situação da pandemia provocada
pelo coronavírus, que acabou jogando ainda mais pessoas no meio virtual que
anseiam por informação, e numa cultura de massas[2],
que é mais acessível, tendo em vista a informalidade da comunicação que acaba
por interligar essas pessoas, dentro de uma rede social, na qual esses usuários
assistem como espectadores os eventos e desses acontecimentos, apresentam,
também, suas manifestações: à favor de algo, ou se posicionam contra alguma
ideia, e disto, comentam, compartilham, pedem likes. Estas condutas,
muito comuns nas redes sociais, seja: youtube, facebook, instagram, twitter,
elas podem ter reflexos patrimoniais sérios na vida da pessoa alvo de um
cancelamento. A imprensa registrou o caso de uma blogueira, que durante as
medidas mais restritivas, realizou festas particulares que claramente mostrava
aglomeração de pessoas, e os seus próprios seguidores discordaram da conduta, e
pediram que as marcas que patrocinavam a influencer que rescindissem
os contratos de patrocínio, ou seja, isto trouxe sérios reflexos ao patrimônio
da pessoa vítima do cancelamento. Outra conduta dos canceladores/seguidores é
deixar de seguir, dar “deslike” – que pode ser entendido como desgostar,
isto é algo que impacta qualquer pessoa que empreende por meio das mídia
digital, de forma a reduzir a quantidade de seguidores, também, trazendo sérias
interferências à contratos de patrocínio, permuta, recebimento de brindes, etc.
O que acontece é que essa massa social
navegante das redes sociais, muitas vezes excitadas pelo calor dos debates nas
redes sociais sobre temas infindos, esquecem, ou não mensuram as consequências
de uma manifestação de cancelamento nas redes sociais.
O código civil de 2002, diferente da
lacuna que havia no código de 1916, traçou parâmetros sobre o abuso de direito
conforme o art. 187, que diz “também comete ato ilícito o titular de um direito
que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim
econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”, e isto é bem fácil de
subsumir em relação a conduta de cancelamento, que pode parecer um exercício de
direito, mais que extrapola os limites traçados na norma e pode acabar violando
um direito da personalidade, como a moral do indivíduo, que no ordenamento tem
sua proteção no âmbito civil – relativo à moral, conforme art. 5º, V da CF, c/c
art. 12 e 20, ambos do Código Civil, e com base no princípio da mínima
intervenção e fragmentariedade[3], o
Direito Penal protege a honra, em seu aspecto objetivo e subjetivo, nos arts.
139, 140 e 141, todos do Código de Delitos.
Da mesma forma que uma pessoa que tem
repercussão no meio social digital, como se diz na linguagem do Instagram:
é um perfil verificado, manifesta uma ideia e pode ser vítima de cancelamento,
os seguidores, canceladores, ou os haters – que são pessoas que se
posicionam contra algo ou alguém, precisa ter a devida cautela com suas
publicações ou postagens, para que não incorra em abuso de direito, seja se
manifestando ou comentando algo de outrem. Assim, o Enunciado n. 139 do
Conselho da Justiça Federal, na III Jornada de Direito Civil, dispôs que: “os
direitos da personalidade podem sofrer limitações, ainda que não
especificamente previstas em lei, não podendo ser exercidos com abuso de
direito de seu titular, contrariamente à boa-fé objetiva e aos bons costumes”.
A boa-fé, da mesma forma que a
proporcionalidade, é uma cláusula geral que pode ser expressa ou implícita, que
fica a cargo do julgador – analista do caso concreto, que se baseia na
previsibilidade de comportamentos. A boa-fé tem como função, ainda, a restrição
do exercício abusivo de direitos, sendo “que as figuras parcelares configuram
topoi argumentativos proveitosos na concretização da boa-fé”[4]
Pode-se, então, concluir que a dignidade
da pessoa humana livre se concretiza nos direitos da personalidade e se
materializa por meio de manifestações de ideias e pensamentos, que estão
passiveis de represarias, como no caso do cancelamento nas redes sociais, como
a resposta às manifestações de pessoas notórias, devem ser, no caso concreto,
ponderadas ou balanceadas com base na proporcionalidade acima apresentada, não
se limitando somente à esse postulado, tendo em vista a imensidão do
ordenamento jurídico e as particularidade in concreto, com objetivo de
se evitar abusos tanto na conduta do ator, quanto na resposta do espectador. A
proporcionalidade mostra-se promissora na ponderação de conflitos de interesses
manifestatórios que venham surgir no meio digital tanto do cancelador quanto do
cancelado.
[1] BARROSO, Luís Roberto, Curso de
direito constitucional contemporâneo, São Paulo, Saraiva:2009, p. 334.
[2] A cultura de massa pode ser
entendida como um conjunto de ideologias, perspectivas, atitudes, imagens e
outros elementos que são adotados por um consenso informal, tendo como
referência uma visão vulgar do mundo ocidental, que é verificada a partir de meado
do século XX.
[3] Segundo PRADO, Luiz. Curso de
Direito Penal Brasileiro - Parte Geral e Parte Especial, 18th Edition. Forense,
2020: O Direito Penal só deve atuar na defesa dos bens jurídicos
imprescindíveis à coexistência pacífica dos homens e que não podem ser
eficazmente protegidos de forma menos gravosa.
[4] TEPEDINO, Gustavo. Fundamentos
do Direito Civil - Obrigações - Vol. 2. Forense, 2020.