Ad Code

Responsive Advertisement

A DIFÍCIL ARTE DE NÃO CONDENAR O PRÓXIMO

No dia primeiro de março, deste ano, o Fantástico exibiu uma reportagem feita pelo médico Drauzio Varella, na qual relatava o desprezo sofrido pelos detentos transexuais. O caso que mais chamou a atenção do público foi o de Suzi Oliveira, uma mulher trans que não recebia visitas há quase 8 anos. A repercussão da reportagem ficou por conta do abraço que o médico deu na entrevistada, como sinal de respeito à sua solidão.

No mesmo dia e nos seguintes, o médico “bombou” nas redes sociais como um exemplo de pessoa humanista, que olha para a dor de todos, independentemente de quem seja. Essa exaltação ao Dr. Drauzio se dá porque o Brasil é um país ainda muito preconceituoso quando se trata de pessoas trans, principalmente as que cometem algum crime. E a reportagem do médico tinha essa intenção: mostrar como os presidiários trans sofrem mais que os outros presidiários.

É claro que houve polêmica nisso tudo e alguns, os muito conservadores e os preconceituosos, rebateram – ou tentaram – rebater as ações do médico. Normal, num país cujo movimento evangélico cresce a cada dia, porque sabemos que o Cristianismo, principalmente o Cristianismo defendido pelas “igrejas evangélicas” consideram a homossexualidade um pecado e a transexualidade é vista como uma abominação, porque segundo eles, quem nasceu biologicamente homem deve ser assim para todo o sempre. Essas questões nem são novas. A expressão “ideologia de gênero” nasceu nesse embate quando a defesa dos direitos das pessoas trans ganharam espaço nas mídias em geral.

Os que condenam a “ideologia de gênero” alegam que não se pode incentivar a mudança de sexo, uma vez que as pessoas podem ser “curadas”, principalmente por Deus. O embate todo se condensa quando um grupo é favorável à liberdade de cada um fazer de seu corpo o que achar que deve ou precisa e outro grupo achar que ninguém tem essa liberdade e que esses discursos contrários devem ser combatidos.

Esse assunto, que permeou todo o processo eleitoral em 2018, que contribuiu para dividir ainda mais o país em dois lados extremos, passou um certo tempo sem causar grandes polêmicas, até o site O Antagonista divulgar, no dia 8 de março, que a transexual Suzi Oliveira, entrevistada e abraçada pelo Dr. Drauzio foi presa por abuso sexual e assassinato de menor. A reviravolta no caso se deu porque a reportagem do Fantástico não havia relevado o crime cometido por Suzi.

De repente, até mesmo os simpatizantes do querido médico mudaram suas posturas de apoio à trans esquecida numa prisão em São Paulo. Depois de divulgado o crime cometido pela transexual Suzi Oliveira, o Dr. Drauzio Varella chegou a se manifestar, emitindo uma pequena nota, em cujo texto disse: “Há mais de 30 anos, frequento presídios, onde trato da saúde de detentos e detentas. Em todos os lugares em que pratico a medicina, seja no meu consultório ou nas penitenciárias, não pergunto sobre o que meus pacientes possam ter feito de errado. Sigo essa conduta para que meu julgamento pessoal não me impeça de cumprir o juramento que fiz ao me tornar médico”.

É preciso sair em defesa do médico, no sentido de que ele, de fato, faz o que jurou fazer, levar o alento a quem quer que seja, independentemente de qualquer coisa. Fora isso, sua reportagem não enfatizava o crime cometido, mas a situação dos condenados, que era a de sofrerem abandono por serem transexuais.

Depois de descoberto o crime cometido, os condenadores alegaram que, pelo crime cometido, a condenada não merecia o apoio que recebera. Alguns, os mais fervorosos, defendam que ela devia receber prisão perpétua ou a pena de morte. É aí onde se esconde um terrível mal no ser humano: a condenação do outro. Ninguém se atentou para o fato de que Suzi já está cumprindo pena, ou seja, está pagando pelo seu crime. Num país cuja justiça é deficitária e pune poucos criminosos, ver Suzi presa é uma vitória do sistema judiciário do Brasil, que, neste caso, cumpriu o seu papel. Vale ressaltar que o abraço do médico em Suzi não significa o perdão ao crime, reflete apenas o tratamento dispensado aos presidiários, principalmente, os presidiários trans. Se outros criminosos recebem visitas e abraços, por que uma pessoa trans não pode receber também?

Os discursos de que Suzi não merecia o abraço do médico implica uma outra condenação, a de todos, a da sociedade que segue seus princípios de amor ao próximo e zelo pelos bens alheios. Ainda que Suzi cumpra 60 anos de prisão, ela será eternamente condenada pelo crime que praticou, que, diga-se de passagem, não é um crime leve. De fato, o crime nos causa arrepio, assusta-nos. E é aí que repousa a difícil arte de não condenar o outro pelos erros praticados. Embora do ponto de vista bíblico não haja pecado grande ou pequeno, não condenamos sem a mensura – e o crime cometido por Suzi é, para nós, um crime grande, grave. Provavelmente, os que exaltaram o médico tenham repensado a exaltação, porque sentem que ao fazê-la, estão sendo coniventes com o crime. Porque é extremamente difícil separar o joio do trigo, porque nascemos numa sociedade condenadora, que já dizimou milhões de pessoas por condenações próprias. Um exemplo disso é o holocausto ocorrido durante a Segunda Guerra, que levou ao extermínio de milhares de inocentes só por serem judeus, negros, gays etc.

Vivemos numa sociedade que não se contenta com a condenação da justiça. Os mais “conservadores”, que negam os direitos humanos aos criminosos, precisam manifestar sua vontade de condenação, porque, para eles, a justiça no Brasil é frouxa e não consegue punir verdadeiramente os criminosos. Nesse sentido, não deixam de ter razão, pois muitos crimes cometidos no país são punidos com penas muito brandas e alguns não recebem punição, como os crimes ambientais, os políticos, os praticados por grandes empresários etc. Cada crime e cada criminoso tem um peso em nossa sociedade. O crime praticado pelos estupradores e pedófilos estão no topo dos crimes considerados os mais hediondos. Se o criminoso for homossexual, o peso aumenta, porque há uma necessidade de se condenar o homossexual ainda mais, visto que o seu comportamento destoa do que a sociedade cristã prega.

Este texto não sai em defesa de Suzi do ponto de vista criminal. Ela cometeu um crime terrível e deve pagar por ele conforme a lei estabeleceu e a Justiça sentenciou. O texto buscar questionar o direito que temos de condenar o outro mesmo quando a justiça já fez sua parte; se cabe a nós, a quem Jesus disse que não deveríamos julgar para nãos sermos julgados, condenar qualquer indivíduo que comete um crime ao qual também poderíamos cometer.





Sergio Santos é um rio-branquense de Belo Horizonte, escritor, Licenciado em Letras/Português, Mestre em Letras: Linguagem e Identidade, Doutor em Estudos Linguísticos, e Professor de Língua Portuguesa na UFAC.

Postar um comentário

0 Comentários

Ad Code

Responsive Advertisement