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Antonio Franciney de A. Rocha
05.12.2020
Num exercício prazeroso de
desfazimento de lendas, inicio pelo Dragão da Catedral, a lenda mais fácil de
provar, pois o dragão existe não no subsolo, mas na parede atrás do altar, subjugado,
derrotado pela Mulher-mãe com o Filho-redentor do mundo que acabara de nascer,
abrigado em seus braços, representando a luta do bem contra o mal, que, segundo
a fé cristã precede a criação do próprio Universo, numa belíssima pintura (baseada
no Livro de Apocalipse) dos artistas (pai e filho alemães) Lorenz Heilmair e
Lorenz Johannes Heilmair, de 1979. Assim, não se trata de lenda, mas de
perspectiva.
Um desses casos é a Casa dos Ruelas, que não é a mais antiga construção, muito menos a primeira construção em alvenaria da cidade, mas tanto fizeram e deixaram de fazer que figura como um símbolo, que incomoda e humilha pelo descaso num ridículo jogo de empurra-empurra. E antes de prosseguir, reafirmo: este texto não é apenas em defesa das ruínas, pela construção em si, mas pelo que representa.
Em 1940, plena II Guerra
Mundial, com a Alemanha voltada para o chamado esforço de guerra, mesmo que naquele
ano o governo brasileiro fosse ainda simpático às ideias nazistas (deixaria de
ser apenas em 42), os recursos não chegavam à Prelazia do Alto Juruá, que tinha
como fonte principal justamente o dinheiro dos alemães.
Foi quando o Bispo resolveu
liberar o Ir. José para realizar obras pela cidade e garantir a sobrevivência.
O “Palacete dos Ruelas”, como
preferem os megalomaníacos, é um símbolo dos tempos em que a nossa principal
riqueza ainda era a borracha e os empresários cruzeirenses estavam voltados
para a exploração de seringais. Um desses seringalistas era o português Joaquim
Maria Ruela.
Joaquim Maria Ruela não era um
homem comum. Proprietário do Seringal Alegria, no Juruá, católico fervoroso (o
maior sino da Catedral foi doado por ele em 1947), respeitado na região, tinha
amizade suficiente com o Bispo Dom Henrique Ritter para solicitar a liberação
do construtor das obras da Prelazia para erguer sua residência no exato local
da sede do Seringal Centro Brasileiro, construída pelo antigo proprietário Antônio
Marques de Menezes – vulgo “Pernambuco”, antes de 1900.
A Casa dos Ruelas não é,
portanto, a construção mais antiga de Cruzeiro do Sul, mas é como se fosse,
pois foi construída no lugar da mais antiga, sendo considerada por este
historiador, o “marco zero” de Cruzeiro do Sul. Quando nos primeiros meses de
1904 as tropas federais do 15º Batalhão de Infantaria do Exército adentraram o
Juruá indo acampar na Boca do Môa, passaram diante do Sobrado do Pernambuco. A
Casa dos Ruelas (o lugar da casa, para não incorrer em anacronismo) data então,
pela cadeia dominial, de um tempo anterior à Fundação da Cidade de Cruzeiro do
Sul. Não é pouco.
E completa 80 anos feito um
“bode na sala”. Sim, a analogia é adequada porque não posso falar que brotam flores
num lugar que os “apertados sem banheiro” do centro da cidade usam para defecar,
ou os noiados se consomem. A população da cidade, as autoridades responsáveis
pela preservação do Patrimônio Histórico, os proprietários, todos reconhecem sua
importância e ninguém a quer. Ou, não a querem com os mesmos interesses, pelas
mesmas razões.
De uns anos pra cá, penso na
Casa dos Ruelas como a hipotética situação em que um cidadão já bastante idoso,
viúvo de quase tudo, cheio de filhos e netos, todos miseráveis, tenham como
único patrimônio uma casa caindo aos pedaços mas no centro da cidade, recebendo
diariamente propostas tentadoras dos capitalistas, mas, sem grandes ambições,
apegado ao pouco que lhe resta dos melhores dias, se recusa a vender seu único
e valioso bem. Como uma maldição, filhos e netos só poderão negociar a casa
quando o velho morrer, se vier a morrer (o que já se duvida), o que ele se
recusa a fazer.
Pois bem, digamos que o
proprietário atual do “Palacete” em ruínas fosse aquele coitado desprovido de
recursos materiais da hipótese. O que faria, vendo seu investimento travado,
sem poder livrar-se do inconveniente octogenário chato que se recusa a morrer? Teria
insanidade suficiente para aplicar a solução utilizada pela Prefeitura de
Cruzeiro do Sul no “Portal da Mâncio Lima às vésperas da Marcha para Jesus de
2019”. Até o momento não, mas o futuro não tem quem meça... Por isso, espera...
Apenas espera.
Não fosse o detalhe “1940”
gravado em sua fachada, acredito que teria sido (como tantas foram), demolida
sem cerimônia nem constrangimento. Acredito que o registro estampado na fachada
é que constrange e incomoda igualmente a todos - responsáveis e
irresponsáveis.
Um culpado por tão
surpreendente longevidade, apesar do abandono? O Ir. José Stickelmann, que a
fez feito às igrejas que ergueu por aqui. Esperar que desmorone sozinha, tijolo
a tijolo, aos pedaços feito ingazeira que morre em pé? Espere sentado ali no
barranco do Fórum, de onde ainda é possível ver o Rio Juruá, lá longe, mas, que
um dia ainda virá desenterrar a Cobra Grande que o cavou...
* Antonio Franciney de
A. Rocha - Historiador
Contato:
franciney.czs@gmail.com