O estudo “Béééééééé!
A voz como recurso poético e político na performance de uma travesti preta e
periférica” foi orientado pela professora dra. Adelice dos Santos Souza, e traz
a voz como um recurso político para denunciar as violências sofridas pelas
travestis, numa dissertação que foge ao padrão acadêmico, incluindo versos e
poesias que questionam e desafiam o sistema. Para a pesquisadora, ao refletir
sobre os lugares de fala e de escuta, também pode dar voz a outras pessoas
trans e, principalmente, abrir um espaço para essas vozes dentro da universidade.
“Tenho a consciência de que a academia necessita de conhecimentos produzidos por pessoas trans para pessoas trans. Essa leitura social inexiste e quero contribuir na busca por esse conhecimento socialmente mais engajado”, explica Kika sobre sua metodologia de trabalho, lembrando que o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo pelo 14º ano seguido.
Ainda que a
universidade tenha ampliado suas formas de acolhimento, a valorização da produção
acadêmica e científica realizada pelas pessoas trans é um desafio a ser
superado. “A universidade, por vezes, aceita nossos corpos, mas não as nossas
ideias e epistemologias. Por isso, há de se refletir sobre a universidade que
temos e a que queremos. Estarmos nesse espaço de uma maneira mais propositiva é
uma forma de transformá-lo, no sentido de torná-lo mais acolhedor, de fazer com
que o contexto acadêmico encare novos sujeitos protagonizando esse lugar”.
Em 2018, uma pesquisa da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) apontou que pessoas trans representavam apenas 0,1% de todas as matrículas no ensino superior público, ou seja, a conquista de Kika Sena, além de transgressora do sistema, é inspiradora.
Kika Sena, a Sereia Vulcânica
Nascida na
cidade de Marechal Deodoro, em Alagoas, filha de mãe solteira e semianalfabeta,
viu nos estudos a única forma de sair daquele ciclo de miséria. Aos 15 anos,
partiu rumo a Brasília para morar com a família de um tio e cursar o ensino
médio. Os anos que se seguiram foram de muitos aprendizados e descobertas no
mundo do teatro.
Sua entrada no
curso de Artes Cênicas na Universidade de Brasília (UnB) foi triunfal, uma grande
vitória para a primeira pessoa da família a ingressar em uma universidade
pública. “Temos que ressaltar a importância não só das cotas, mas também das
bolsas. Dentro da UnB, eu consegui estudar graças às bolsas de assistência
estudantil. Diziam que eu tinha altas habilidades, mas eu me esforçava tanto
que acho que era só esforço mesmo”, relembra Kika.
Ainda na UnB,
Kika começou o mestrado, mas foi convidada para gravar o filme “Noites
Alienígenas” (um dos indicados a concorrer ao Oscar 2023). O diretor, Sérgio de
Carvalho, ficou encantado com seu desempenho no Campeonato de Slam, em
Brasília, e a convidou para vir ao Acre para as gravações.
No Acre, Kika
apaixonou-se por Sara Bicha, então estudante de Artes Cênicas. Do namoro,
nasceu Kaê. Essa união de atrizes, produtoras, escritoras, poetisas, mães,
travestis, bissexuais resultou em mais trabalhos e no retorno de Kika ao
mestrado, que hoje conclui com sucesso.
“Sara foi muito
importante para minha retomada do mestrado, porque é muito difícil sem apoio da
família e, mais uma vez, destaco a importância das bolsas. Sem os auxílios, não
seria possível voltar aos estudos. Neste momento final, estou muito feliz e
aliviada de concluir mais esse ciclo da minha vida”, desabafa.
No período da
pandemia Kika gravou o filme “Paloma”, de Marcelo Gomes, em que é protagonista
e, por essa atuação, recebeu o prêmio de Melhor Atriz no Festival do Rio 2022.
Agora, após dois
anos de dedicação quase exclusiva à dissertação, a Sereia Vulcânica volta à
cena. Depois de participar do episódio “Sísmicas” da série Histórias (Im)Possíveis,
da Globo, Kika está com as malas prontas para o Rio de Janeiro, onde irá gravar
uma série de época da HBO Max.